segunda-feira, 12 de abril de 2010

Perólas da flor do Lácio.

Não sei se pela minha singular capacidade de ver, ouvir e perceber tudo ao redor, se pela gigantesca e nata curiosidade feminina ou se pela eterna paixão pela Língua de Camões, diálogos e textos um tanto aterrorizantes parecem me perseguir, surgindo de todas as partes.
Dia desses estava eu saboreando um delicioso pastel num dos muitos cantinhos agradáveis de Curitiba, quando uma jovem bastante ajeitadinha entra na pastelaria a procura de um bombom desses caseiros. Eis que a ajeitadinha, apressada, pede à atendente: “Ah, tia, marca pra eu?”. Um trovão para os meus ouvidos. “Marcar eu marco, mas não fica bem você falando pra eu...”, diz delicada e sorridentemente a senhora atrás do balcão. Ao que a moça rebate: “Não, tia... se tivesse verbo depois daí seria mim, como: ‘pra mim pagar depois’.” E saiu com aquela pressa, mas ainda com tempo de um último alerta, lá de fora do comércio: “Não esquece hein, tia: se tiver verbo é mim, se não, você usa eu!”
Há quem defenda – e não são poucos – que na fala tudo vale. Sim, imensa é a variação linguística. Sim, o uso da língua depende de condição socioeconômica, de escolaridade, de aspectos geográficos, de um emaranhado quase infinito de fatores. Longe de defender uma penalidade àquele que não faz uso da norma culta, pois quem o faz?! Mas, particularmente, não consigo ser assim tão liberal. Há coisas que atingem o mais profundo de meus tímpanos (quando não de meus olhos, mas essa é outra história).
Como se não bastasse o pra eu da mocinha, ela ainda quis ensinar a tia da lanchonete para que jamais esquecesse a regra. Pensou que fazia bonito na frente de todo mundo. Pensando em estereótipos sociais: pra quem não entende lá muita coisa das regrinhas cultas de nossa língua, a ajeitadinha estava dando uma aula, uma super aula, pra simplória tia dos pastéis. Pra quem domina um pouquinho das normas da flor do Lácio, ela pagou foi um mico. E que mico!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Quinta-feira treze.


Eis que saio à procura de respostas. Perguntas de fato, exatas, elaboradas não tenho. Ou as tenho aos montes. Depende. Vivo a perguntar. Por vezes não sei bem o quê, nem pra quem, nem por quê. É tudo meio obscuro. Mas pergunto, pergunto, pergunto. Desde os meus três anos. É, desde os três procuro respostas plausíveis para perguntas incertas.
Naquela noite de quinta-feira, saí pela feirinha com ouvidos atiçados. Mente inquieta. À espera de um sopro da sabedoria mercuriana. Embora nada de concreto tivesse perguntado, esperava uma resposta dele. Transbordava de ansiedade. Será que ele viria? Será que ele sabe soprar respostas mesmo sem perguntas exatas? Deve saber sim. Um deus sempre sabe das coisas.
Então me aventurei a andar por ali. Coincidentemente encontrei um colega de trabalho. Muito coincidentemente! Até então eu não sabia que se tratava de um colega de trabalho. Soube ali. Um bancário como eu. Padecedor do Banco do Brasil S/A como eu. Esperando por um sopro de Mercúrio como eu. Da conversa surgiram não poucas respostas para não poucas perguntas incertas que andava me fazendo a respeito do meu ofício de gosto duvidoso. Engraçado, vieram também algumas respostas, dicas úteis para minha eterna aflição: perder peso (sabe que me convenci a nem comer um pastel naquela noite!). Um pouco mais de prosa. Sai um pra cá, outro pra lá. Precisávamos nos concentrar. Era preciso ouvir o sopro do Oráculo. Por um momento pensei: será mesmo um colega bancário? Não seria ele o próprio Mercúrio?
Ando mais um pouquinho. Só mais um pouquinho. E de súbito acordo. Sim, pois eu só podia mesmo estar sonhando. O que fazia eu ali, em uma feira noturna, no Largo da Ordem, em Curitiba, em pleno século XXI, esperando por um sopro do tal Oráculo de Mercúrio?! Um tanto quanto cética, passo longe de crendices e superstições. Quem dirá acreditar em oráculos. Há tempos desenvolve-se ciência. Pra quê? Pra que tanta pesquisa, tanto empenho? Pra acreditarmos em oráculos? Deus me livre! É até pecado - dizem.
Com tanta coisa melhor pra fazer, eu ali perdendo meu tempo com bobagens. Me benzo com o sinal da cruz. Desvio a escada. Sigo a caminho de casa rezando pra que nada me aconteça. Porque depois que quebrei aquele espelho...

Entre o inferno e o céu, um pastel.


Noite quente de quinta-feira. Como de costume, observo. Feirinha chocha no Largo. A barraca do pastel. A barraca da bolacha. A barraca do salame. A barraca da fruta. A barraca da pamonha. Mas o Largo, ah, o Largo é o Largo. Mesmo em dia de feirinha chocha. Aquele jeitinho de Curitiba. Calçadas típicas. Gente de todo tipo. Baratas - dizem. A Fonte da Memória. O Relógio das Flores. Observadores e observados. Deliciosa penumbra iluminada. Beleza exótica, de expressivos contrastes. Um arcabouço histórico que se reinventa e é reinventado, pertence sempre ao seu tempo e a um outro.
Minha paixão por esse cantinho da esplêndida Curitiba é declarada. Mas há tempos, mais precisamente depois que passei a desenvolver um certo ar a la Caco Antibes, penso uma, duas, três vezes antes de encarar um passeio noturno por ali.
- Compra uma flor, tia.
- Compra um desse, moça (um treco feito de lata, que não serve pra nada).
- Me dá uma moeda, tia.
- Me dá um pastel, moça.
E o passeio, fosse cair na insistência dessas criaturas, viraria um verdadeiro treino para Madre Tereza de Calcutá. Definitivamente não dá. Pedem no sinaleiro. Pedem no estacionamento público. Pedem no ônibus. Pedem no Largo, meu Deus, como pedem no Largo!
Rezo para que nenhum deles me veja. Se pudesse, far-me-ia invisível. Assim, poderia curtir o Largo. Admirar o cavalo babão. Tomar uma cerveja gelada. Permanecer comigo mesma. Observar sem ser incomodada. Quem sabe comer um pastel.
Ah, o pastel. Culpado de tudo na dita noite quente de quinta-feira. Culpado pela minha repulsa. Culpado pela minha insensibilidade. Culpado pela minha dúvida de ter ou não um lugarzinho reservado no céu. Sim, porque depois do tratamento que dispensei aquela garota...
- Compra um pastel pra mim, tia?! (nem olhei, fingi que não era comigo).
Dois minutos depois, de posse de um pastel de carne já pela metade:
- Compra um pastel pra mim, tia?! (olhei de canto de olho e disse, delicada e raivosamente, um não).
Uma careta da garota. Eu ainda menos sensibilizada. Dois minutos depois, com a cara gordurosa de pastel e já saboreando um outro:
- Compra um pastel, tia. (ignoro) Compra uma Coca então?! (não).
Sai de fininho. Ouve alguns outros nãos por ali. Dois minutos depois, arrecada mais um pastelzinho. Acompanhado de uma Coca, é claro. E eis que, acreditem, novamente vem em minha direção, para ao meu lado, olha, olha, e:
- Compra um pastel, tia. (NÃOOOO!)
Uma careta assustadora. Sai reclamando.
Percebo-me, então, com o olhar e o pensamento fixos naquela construção barroca, essencialmente repleta de dualidades e incertezas: a histórica Igreja do Rosário. Sim, o Largo é o barroco por si só. Mas aquela Igreja... Aquela Igreja me transportou para um eu tenso, uma imagem de céu e inferno – em que sequer sei se acredito -, um conflito interior, uma religiosidade incerta.
Será que sofro de uma insensibilidade nata? Não, não pode ser. Lembro que já fui boazinha. No passado. Lá nos idos de... Bem, há tempos lembro que fui. Mas agora, é tanta gente pedindo. É tanta gente mal-agradecida – esses tempos, um se dizia faminto. Jogou o sanduíche, ali, bem na cara da moça solidária. Outro, muito necessitado – os seis filhos passando fome -, vendeu as latas de leite que recebera de um programa desses do governo. A droga era mais urgente. Outro...
Bem, é noite quente de quinta-feira. Como de costume, observo. Feirinha chocha no Largo. A barraca do pastel. A barraca da bolacha. A barraca do salame. A barraca...

Com a benção de São Cristóvão.

Não que eu me preocupe demasiadamente com as conversas alheias ou sofra de uma grave sociofobia, mas a idéia de trafegar em um transporte coletivo me causa arrepios: pensar que serei obrigada a ouvir ridículas e absurdas tagarelices provenientes de todos os lados ou, pior, muito pior, pensar que alguém pode entender que estou extremamente solitária na companhia de meu livro - nunca saio sem levar um - e resolver trocar palavrinhas sem nexo comigo. Eis que hoje não houve escapatória e fui obrigada a encarar um biarticulado daqueles um tanto lotados. Logo de início percebi que não seria uma tarefa fácil, mas tentei manter o humor. O primeiro ônibus a chegar lotou, lotou de uma maneira que se resolvesse entrar nele certamente viraria uma sardinha enlatada. Então resolvi, calmamente, sem qualquer indignação, esperar pelo próximo carro. Em pouquíssimos minutos, mas suficientes para que a plataforma de embarque ficasse repleta de indivíduos pouco educados, apressados e potenciais tagarelas sem assunto, surge o que todos acreditavam ser o próximo vermelhão. RECOLHE 14 HORAS, dizia a plaqueta grudada no pára-brisa do ônibus, que parou fora da plataforma de embarque. Naquele momento, 14 horas; a plaqueta era clara; o motorista parou fora do local onde habitualmente se embarca. Mas não, isso não foi o suficiente para que aqueles indivíduos pouco educados, apressados e potenciais tagarelas sem assunto percebessem que aquele não era o ônibus que há horas esperavam. Fiquei quietinha à espera do próximo. Mas o bando movimentou-se para lá, em direção ao ônibus, a postos como em um campo de batalha. A porta de entrada obviamente não se abriu. E...foi como se mundo estivesse desmoronando para aqueles indivíduos que, diante de suas espertezas, sequer perceberam que logo atrás estava o tão esperado transporte. Reclamações, xingamentos ao motorista, comentários sem pé nem cabeça... Meu São Cristóvão!!!
Após esse rápido episódio, já aconchegada em um banco individual, para evitar qualquer companhia que não fosse Eça de Queirós, percebo uma senhora suspeita adentrando ao ônibus. E eis que minha suspeita imediatamente se confirma: ela era mesmo uma tagarela sem assunto. E, durante um bom tempo de minha viagem, seus diálogos pareciam misturar-se com os de Padre Amaro. Era impossível não ter ouvidos e mente invadidos pelas palavras incessantes da agradável senhorinha. Soube que hoje ela tirou o dia para pisar sem querer nos pés das pessoas, mas sorte que ela pisa bem devagarzinho. Soube que Amaro era um menino muito mentiroso. Soube que hoje ela tinha andado em 16 ônibus e ainda pegaria mais 08, e olha que a maioria deles eram desses de 04 portas e não 05. Soube que, por decisão da Marquesa, Amaro iria para o seminário aos 15 anos. Soube que a tagarela foi várias vezes ao Hospital de Olhos, sofre de dor nas pernas, mas não são varizes como o caso da mulher que sentava ao seu lado: é artrose. Porque depois dos 40... Soube que no seminário Padre Amaro tinha fantasias com a imagem da Virgem. Soube que não guardar dieta de parto faz a mulher ficar louca. Soube que o pároco, no confessionário, nem tocava no assunto das tais fantasias. Soube que a tal da loucura é facinho de curar: é só ter outro filho e se resguardar direitinho os 40 dias...Soube que se eu não me incomodasse tanto com as conversas alheias... Se eu não fosse tão anti-social com os pobres desconhecidos... Tudo seria bem mais simples.

Fabíola Rangel